O automóvel é um dos principais símbolos de nossa sociedade hiper consumista. Ele representa a liberdade, e transforma a própria noção do direito de ir e vir. Ter um veículo próprio é importante na definição de nossa posição social. Muitas empresas possuem verbas para que seus mais importantes executivos possuam veículos compatíveis com sua imagem institucional. Além disto a indústria automobilística é um dos pilares da economia mundial.
A popularização do carro alterou por completo o desenho das cidades. Ao invés de cidades populacionalmente densas, que ocupavam uma menor parcela do território, vimos surgir as cidades espraiadas, com uma periferia quase sem limites. O automóvel tornou viável percorrer distâncias até então inimagináveis, entre a casa, o trabalho, o lazer. As qualidades de uma vida semiurbana, onde se poderia aproveitar o que de melhor havia nas cidades, sem se afastar da qualidade ambiental da vida campestre, tornou-se uma realidade tangível para milhões. Dentro deste padrão urbanístico, o automóvel é indispensável, pois praticamente todas as atividades são mediadas por ele. Ao mesmo tempo, vastas áreas das cidades foram ocupadas por novas e amplas vias, capazes de dar vazão ao cada vez maior volume de veículos. Muitas calçadas foram estreitadas para liberar mais espaço para os carros. Este processo acabou por legitimar, políticas urbanas que privilegiavam o automóvel. A cidade de São Paulo é uma exemplo disto: os últimos cinco prefeitos, eleitos diretamente pelos paulistanos, podem apresentar entre suas mais destacadas ações, obras que ampliavam o sistema viário. Av. Roberto Marinho, Túneis da Faria Lima, Ponte Estaida e por fim a ampliação da Marginal Tietê se inserem neste contexto.
Contudo vemos gradativamente este quadro mudar. Já existe um quase consenso de que se deve diminuir a utilização do automóvel por conta da saturação do modelo urbano acima descrito. As cidades não conseguem mais criar espaços suficientes para atender a demanda por novas vias. Os congestionamentos aumentam, a poluição gerada pelos carros aumenta. Outro ponto crítico é a crise energética atual. Os automóveis são grandes consumidores de energia, quase que exclusivamente abastecidos por petróleo, cuja exploração pode, segundo muitos especialistas, entrar em declínio nas próximas décadas. Todos estes fatores permitiram o surgimentos das primeiras vozes contrárias ao uso indiscriminado dos automóveis. Porém há um aspecto que convém ser destacado.
Recentemente, uma série de fatos mudou a maneira como olhamos para o sonho de consumo de tantas pessoas. Pesquisadores da Universidade do Sudeste da Califórnia relacionaram a poluição emitida pelos automóveis a danos cerebrais semelhantes à doença de Alzheimer. Em São Paulo, onde cerca de 90% da poluição do ar é gerada por veículos, o Laboratório de Poluição da USP constatou que respirar o ar da cidade equivale a fumar dois cigarros por dia, o que acarreta uma perda da capacidade pulmonar. Diante desses fatos é preciso entender que o automóvel, não é apenas uma questão de transporte, de infraestrutura urbana, ou mesmo signo social de status. O uso abusivo do automóvel é um problema de saúde pública, que sobrecarrega o sistema de saúde e que piora, dramaticamente, a qualidade de vida das pessoas. De forma polêmica a União Europeia iniciou um debate sobre estratégias que eliminem os veículos movidos por combustível fóssil de todas as cidades até 2050. Parece uma solução de extremo radicalismo, mas que se transforma em saída lógica, para um problema de grande escala. O automóvel me faz lembrar de um outro produto importante para economia global: o tabaco. Penso que nossa sociedade deveria se relacionar com os carros da mesma maneira que se relaciona com o cigarro. O Ministério da Saúde adverte: andar de carro é prejudicial à saúde. Este poderia ser um slogan capaz de esclarecer a grande maioria das pessoas que diariamente ligam seus carros, sem saber que este ato irá prejudicar o seu cérebro ou seu pulmão. As evidências científicas não podem ser negligenciadas. Precisamos criar uma nova cultura que veja o carro como um bem que deve ser utilizado de forma comedida. Temos o desafio de reformar nossas cidades de modo a criar alternativas de transporte público confortáveis, e bairros com uma mistura de usos que diminuam o tamanho de nossos trajetos diários. Se criássemos um ambiente urbano que favorecesse o caminhar, a bicicleta, o bonde, o trem, diminuiríamos nossa dependência do automóvel, e teríamos um aumento de nossas atividades físicas diárias. Surpreendentemente veríamos uma diminuição não somente nas filas dos semáforos, mas também nas dos hospitais.
Marcos O. Costa
(Arquiteto e urbanista)
Retirado do Blog do Osvaldo Campos